A BOA-FÉ

 

O que é a boa-fé?

 É um fato, que é psicológico, e uma virtude, que é moral.

Como fato, é a conformidade dos atos e das palavras com a vida interior, ou desta consigo mesma.

Como virtude, é o amor ou o respeito à verdade, e a única fé que vale  porque tem a própria vontade como objeto.

 

Não, claro, que a boa-fé valha como certeza, nem mesmo como verdade (ela exclui a mentira, não o erro), mas que o homem de boa-fé tanto diz o que acredita, mesmo que esteja enganado, como acredita no que diz.

É por isso que a boa-fé é uma fé, no duplo sentido do termo, isto é, uma crença ao mesmo tempo em que uma fidelidade.

É crença fiel, e fidelidade no que se crê.

 

Pelo menos enquanto se crê que seja verdade. Vimos, a propósito da fidelidade, que ela devia ser fiel antes de tudo ao verdadeiro: isso define muito bem a boa-fé. Ser de boa-fé não é sempre dizer a verdade, pois podemos nos enganar, mas é pelo menos dizer a verdade sobre o que cremos, e essa verdade, ainda que a crença seja falsa, nem por isso seria menos verdadeira.

É o que se chama também de sinceridade (ou veracidade, ou franqueza), e o contrário da mentira, da hipocrisia, da duplicidade, em suma, de todas as formas, privadas ou públicas, da má-fé.

Há mais, porém, na boa-fé do que na sinceridade – em todo caso é uma distinção que proponho.

Ser sincero é não mentir a outrem; ser de boa-fé é não mentir nem ao outro nem a si.

A solidão de Robinson Cruzoé , em sua ilha, dispensava-o de ser sincero (pelo menos até a chegada de Sexta-feira) e até tornava essa virtude sem objeto.

Nem por isso a boa-fé deixava de ser necessária, em todo caso louvável e devida.

A quem? A si, e isso basta.

 

A boa-fé é uma sinceridade ao mesmo tempo transitiva e reflexiva.

Ela rege, ou deveria reger, nossas relações tanto com outrem como conosco mesmos.

Ela quer, entre os homens como dentro de cada um deles, o máximo de verdade possível, de autenticidade possível, e o mínimo, em conseqüência, de artifícios ou dissimulações.

Não há sinceridade absoluta, mas tampouco há amor ou justiça absolutos: isso não nos impede de tender a elas, de nos esforçarmos para alcançá-las, de às vezes nos aproximarmos delas um poucoA boa-fé é esse esforço, e esse esforço já é uma virtude.

Virtude intelectual, se quisermos, pois refere-se à verdade, mas que põe em jogo (já que tudo é verdadeiro, até nossos erros, que são verdadeiramente errados, até nossas ilusões, que são verdadeiramente ilusórias) a totalidade de um indivíduo, corpo e alma, sensatez e loucura.

 

O pensamento não é apenas um ofício, nem uma diversão.

É uma exigência: exigência humana, e talvez a primeira virtude da espécie.

A invenção da linguagem não cria em si mesma nenhuma verdade, mas traz a possibilidade, não apenas da astúcia ou do logro, como nos animais, mas da mentira. Homo loquax: homo mendax.

 O homem é um animal que pode mentir, e que mente.

É isso o que torna a boa-fé logicamente possível, e moralmente necessária.

 

A boa-fé por si não prova nada.

 

Quantos canalhas sinceros, quantos horrores consumados de boa-fé? E, muitas vezes, o que há de menos hipócrita que um fanático?

Um nazista de boa-fé é um nazista: de que adianta sua sinceridade?

Um canalha autêntico é um canalha: de que adianta sua autenticidade?

 

Como a fidelidade ou a coragem, a boa-fé tampouco é uma virtude suficiente ou completa.

Ela não substitui a justiça, nem a generosidade, nem o amor. Mas que seria uma justiça de má-fé?

Que seriam um amor ou uma generosidade de má-fé?  

Nenhuma virtude é verdadeiramente virtuosa sem essa virtude de Verdade ( a boa-fé ).

Virtude sem boa-fé é má-fé, não é virtude.

 

A boa-fé, como todas as virtudes, é o contrário do narcisismo, do egoísmo cego, da submissão de si a si mesmo.

É por intermédio disso que ela tem a ver com a generosidade, a humildade, a coragem, a justiça… Justiça nos contratos e nas trocas (enganar o comprador de um bem que vendemos, por exemplo, não o avisando sobre determinado defeito oculto é agir de má-fé, é ser injusto, coragem de pensar e de dizer, humildade diante do verdadeiro, generosidade diante do outro

A verdade não pertence ao eu: é o eu que pertence a ela, ou que ela contém, e que ela permeia, e que ela dissolve.

O eu é quase sempre mentiroso,  ilusório, egoísta. 

A boa-fé liberta-se dele, e é por isso que ela é boa.

 

Deve-se dizer tudo, então? Claro que não, pois não é possível. Falta tempo, e a decência o impede, a polidez o impede. Sinceridade não é exibicionismo. Sinceridade não é selvageria. Temos o direito de nos calar, e até devemos fazê-lo com freqüência. A boa-fé não proíbe o silêncio mas sim a mentira (ou o silêncio apenas quando mentiroso), e ainda assim nem sempre. Veracidade não é patetice. Em todo caso, a verdade é “a primeira e fundamental parte da virtude” que condiciona todas as outras e não é condicionada, em seu princípio, por nenhuma.

 

Aquele que diz a verdade porque é obrigado e porque ela serve, e que não teme dizer mentira, quando não importa a ninguém, não age de boa-fé. Não dizer tudo, pois, mas dizer – salvo dever superior – apenas o verdadeiro, ou o que se pensa ser verdadeiro, é agir de boa-fé.

 

Há lugar aqui para uma espécie de casuística, no bom sentido do termo, que não enganará os que são de boa-fé. O que é a casuística? É o estudo dos casos de consciência, das dificuldades morais que resultam, ou podem resultar, da aplicação de uma regra geral, por exemplo: “Não se deve mentir”. 

 

A regra é uma regra de boa-fé, mas nem sempre se deve dizer tudo, pois seria tolice; mas o que se diz, é preciso que seja tal como pensamos, senão é maldade.

 

A boa-fé é essa virtude que faz da verdade um valor e a ela se submete.

Fidelidade antes de tudo ao verdadeiro, sem o que qualquer fidelidade não passa de hipocrisia.

Amor à verdade, antes de tudo, sem o que todo amor não passa de ilusão ou de mentira.

A boa-fé é essa fidelidade, a boa-fé é esse amor, em espírito e em ato.

Digamos melhor: a boa-fé é o amor à verdade, na medida em que esse amor comanda nossos atos, nossas palavras, até mesmo nossos pensamentos.

É a virtude dos verídicos.

O que é um homem verídico?

É aquele, explicava Aristóteles, que “ama a verdade” e que por isso recusa a mentira, tanto por excesso como por falta, tanto por fabulação como por omissão.

 

Tratar-se-ia de sofisma  qualquer pensamento que se submete a outra coisa que não a verdade, ou que submete a verdade a outra coisa que não ela mesma.

Trata-se de viver e de pensar, tanto quanto possível, em verdade, ainda que à custa da angústia, da desilusão ou da infelicidade.

Fidelidade ao verdadeiro, antes de tudo: mais vale uma verdadeira tristeza do que uma falsa alegria.

 

A boa-fé resiste a gabolice pois faz oposição ao narcisismo ou ao amor próprio irreal. O amor a si? Não, é claro, já que o verídico é amável, já que o amor a si é um dever, já que seria mentir, simular, para consigo mesmo, uma impossível indiferença.

Mas o homem verídico se ama como é, como se conhece, e não como gostaria de parecer ou de ser visto.

É o que distingue o amor a si do amor-próprio, ou a magnanimidade, como diz Aristóteles, da vaidade.

O homem magnânimo “preocupa-se mais com a verdade do que com a opinião pública, fale e age abertamente, pois o pouco caso que faz da opinião dos outros lhe permite exprimir-se com franqueza.

É por isso que ele gosta de dizer a verdade.

 

Dir-se-á que a essa magnanimidade falta caridade, o que é verdade; mas não por causa da veracidade que ela comporta.

 Mais vale uma verdadeira grandeza do que uma falsa humildade.

E também é verdade que ela se preocupa demais com a honra; mas nunca à custa da mentira.

Mais vale uma verdadeira altivez do que uma falsa glória.

 

O verídico submete-se à norma da idéia verdadeira dada  ou possível.

 Aquilo que sabe ou crê ser verdadeiro, nunca o que sabe ou o que crê ser falso.

A boa-fé excluíria então toda mentira? Em tese  sim, e quase por definição: como se mentiria de boa-fé? Mentir supõe que se conheça a verdade, ou que se creia conhecê-la, e que se diga deliberadamente outra coisa que não o que se sabe ou o que se crê. É isso que a boa-fé proíbe, ou recusa.

 

Não obstante ser de boa-fé é dizer sempre o que se pensa ser verdadeiro,  é ser fiel (em palavras ou atos) à sua crença, é submeter-se à verdade do que se é ou se pensa,  esse rigorismo é dificilmente sustentável de forma absoluta porque seria, com frequência, irrazoável só ouvir a razão,  seria condenável só amar a virtude, seria fatal para a liberdade só querer agir enquanto livre.

 

A boa-fé é uma virtude, mas a prudência também, e a justiça, e a caridade.

 

Se for necessário mentir para sobreviver, ou para resistir à barbárie, ou para salvar a quem se ama, a quem se deve amar, não há a menor dúvida de que se deva mentir, quando não há outro meio, ou quando todos os outros meios seriam piores.

 

O desejo de verdade, que é a essência da boa-fé, permanece nisso submetido à verdade do desejo, que é a essência do homem: ser fiel ao verdadeiro não poderia dispensar ser fiel à alegria, ao amor, à compaixão, enfim, à justiça e à caridade, que são toda a lei e a verdadeira fidelidade.

 

Ser fiel ao verdadeiro, em primeiro lugar, é também ser fiel à verdade em si do desejo: se é necessário enganar o outro ou se trair, enganar o mau ou abandonar o fraco, faltar com a palavra ou com o amor, a fidelidade ao verdadeiro (a esse verdadeiro que somos, que carregamos, que amamos) pode às vezes impor a mentira.

 

Nenhuma mentira é livre, por certo; mas quem pode ser sempre livre? E como o seríamos, diante dos maus, dos ignorantes, dos fanáticos, quando eles são os mais fortes, quando a sinceridade para com eles seria cúmplice ou suicida?  A mentira não é  uma virtude, mas a tolice também não, o suicídio também não. Simplesmente, às vezes é preciso se contentar com o mal menor, e a mentira pode sê-lo. A sua causa nunca pode ser de motivação leviana, e mesmo mentindo podemos nos propor uma finalidade boa.

 

A veracidade não é um dever absoluto e incondicionado que vale em todas as circunstâncias  e não  admitiria a menor exceção a sua regra que, por sua própria essência, não toleraria nenhuma. Então, sendo assim, para assassinos que lhe perguntassem se seu amigo, que eles perseguem, não está refugiado em sua casa, a mentira seria um crime, seria ato de má-fé?

Certamente, nem toda mentira é condenável. Ainda que assim fosse, é dar muita importância à sua própria pessoa.

O que é essa virtude tão preocupada consigo, com sua integridade, com sua dignidade, que, para se preservar, está disposta a entregar um inocente a assassinos?

O que é esse dever sem prudência, sem compaixão, sem caridade?

A mentira é uma falta? Sem dúvida.

 Mas a aridez de coração também, e mais grave!

A veracidade é um dever? Sem dúvida.

 Mas a assistência a uma pessoa em perigo o é também, e mais premente.

 

A barbárie adquiriu uma dimensão perto da qual qualquer rigorismo é ilusório, quando só ocupa a consciência, ou odioso, quando equivale a servir efetivamente aos carrascos. Você abriga um judeu ou um resistente em seu sótão. A Gestapo, que o procura, interroga você. Você irá dizer-lhes a verdade? Irá se recusar a responder (o que daria na mesma)? Claro que não! Qualquer homem honrado, qualquer homem de coração e mesmo qualquer homem de dever irá sentir-se não apenas autorizado, mas obrigado a mentir. É o que digo: a mentir.  Mentir aos policiais alemães que nos perguntam se escondemos um patriota em casa, não é mentir, é dizer a verdade; responder: não há ninguém, quando há, é [nessa situação] o mais sagrado dos deveres.

 

Mentir aos policiais alemães é, evidentemente, mentir, e isso prova apenas (pois essa mentira, no exemplo considerado, é seguramente virtuosa) que a veracidade não é um dever absoluto, não é um dever universal, e talvez não haja deveres absolutos, universais, incondicionais (portanto, nenhum dever, no sentido kantiano), mas apenas valores, mais ou menos elevados, mas apenas virtudes, mais ou menos preciosas, urgentes ou necessárias.

 

A veracidade é uma delas, mas menos importante do que a justiça, do que a compaixão, do que a generosidade, menos importante do que o amor, evidentemente, ou antes, menos importante, como amor à verdade, do que a caridade como amor ao próximo.

 

De  resto, o próximo também é verdadeiro, e essa verdade em carne e osso, essa vontade sofredora, é mais importante – ainda mais importante! – do que a veracidade de nossas palavras.

 

Fidelidade ao verdadeiro antes de tudo, mas mais ainda à verdade dos sentimentos do que a de nossas declarações, mais à verdade da dor do que à da palavra.

 

Transformando a boa-fé num absoluto a perdemos, pois ela deixa de ser boa, pois se torna apenas veracidade ressecada, mortífera, odiável. Já não é boa-fé, é veridismo; já não é virtude, é fanatismo. Fanatismo teórico, desencarnado, abstrato: fanatismo de filósofo, que gosta loucamente da verdade. Mas nenhum fanatismo é virtuoso.

 

 

Tomemos outro exemplo, menos extremo. Devemos dizer a verdade ao moribundo? Sim, sempre, responderia Kant, pelo menos se o moribundo perguntar, pois a veracidade é um dever absoluto. Não, nunca, responde Jankélévitch, pois seria lhe infligir sem razão a tortura do desespero. Dizer a verdade ao moribundo, quando ele pede, quando ele pode suportá-la, pode ser também ajudá-lo a morrer na lucidez , na paz, na dignidade, a morrer na verdade, como ele viveu, como quis viver, e não na ilusão ou na negação.

 

Há que diga que quem diz ao moribundo que ele vai morrer mente; primeiro ao pé da letra, pois ele não o sabe, porque só Deus sabe, porque nenhum homem tem direito de dizer a outro homem que este vai morrer; em seguida, quanto ao espírito, porque lhe faz mal. Mas, quanto à letra, é confundir boa-fé com certeza, sinceridade com onisciência: o que impede o médico ou os próximos de dizerem sinceramente o que sabem ou crêem, inclusive os limites, nesses domínios, do saber e da crença?

 

E, quanto ao espírito, é dar muito pouco valor à verdade e muito pouca estima ao espírito. Colocar a esperança acima da verdade, acima da lucidez, acima da coragem é por o espírito alto demais. Que vale a esperança, se é à custa de mentira, à custa de ilusão?

 

 Há quem diga que os homens pobres e sós não devem ser afligidos e isso é mais importante que tudo, mesmo que a verdade. Sim, se a aflição for atroz, se o homem só e pobre não puder suportá-la, se apenas a ilusão o fizer viver. Mas é sempre assim?

 

E de que adianta então a filosofia, de que adianta a própria sinceridade, se ambas devem se deter ao aproximar-se da morte, se a verdade só vale quando nos tranqüiliza, quando não implica o risco de nos afligir?

 

Nesses domínios, desconfio dos que dizem nunca  tanto quanto dos que dizem sempre.

Que se possa mentir por amor ou por compaixão, e que se deva fazê-lo às vezes, estou de acordo, é claro.

O que há de mais imbecil, e de mais covarde, do que impormos aos outros uma coragem de que não temos certeza de ser capazes? Sim: cabe ao moribundo primeiro decidir, quando pode, da importância que dá à verdade, e ninguém está capacitado, quando ele não pode, a decidir em seu lugar. Contudo, doçura  em vez de violência: a compaixão prevalece aqui, e deve prevalecer, sobre a veracidade. Mas a verdade ainda assim continua sendo um valor, do qual não poderíamos privar o outro, sobretudo se ele a pedir, sem razões muito fortes e precatados.

O conforto não é tudo. O bem estar não é tudo. Que seja necessário suprimir o sofrimento físico, na medida do possível, está claro, e nossos médicos deveriam ocupar-se mais disso. Mas e o sofrimento moral, e a angústia, e o medo, quando fazem parte da própria vida? “Morreu sem perceber”, dizem às vezes. Será mesmo uma vitória da medicina? Pois, afinal de contas, ele acabou morrendo, e a tarefa dos médicos, que eu saiba, é nos curar quando podem, não nos esconder que não podem. “Se eu lhe disser a verdade, ele vai se matar”, disse  um médico. Mas o suicídio nem sempre é uma doença (também é um direito, do qual, assim, privamos o doente); a depressão, sim, é uma, doença da qual se trata.

Os médicos existem para tratar, não para decidir no lugar de seu paciente se sua vida – e sua morte! – vale ou não a pena ser vivida.

 

Cuidado, amigos médicos, com o paternalismo: vocês têm a seu encargo a saúde de seus pacientes, mas não sua felicidade, mas não sua serenidade. Um moribundo não tem o direito de ser infeliz? Não tem o direito de ficar angustiado? O que é então, nessa infelicidade, nessa angústia, que os assusta tanto assim? Isso é dito, ou deve ser dito  sempre  sob reserva da compaixão, da doçura, da ternura…Mais vale mentir do que torturar, mais vale mentir do que apavorar. Nenhuma virtude poderia tomar o lugar da verdade, nem valer absolutamente sem ela, mas a verdade também não toma o lugar de tudo..

 

Há quem diga que a morte mais bela, moralmente, espiritualmente, humanamente, é a mais lúcida, a mais serenamente lúcida, e é também nosso dever acompanhar os moribundos, quando for preciso, quando eles puderem, até essa verdade derradeira. Quem ousaria mentir, em seus derradeiros momentos, a Cristo ou a Buda, a Sócrates ou a Epicuro ? Dir-se-á que essas personagens não pululam nas ruas, nem nos quartos de hospital. Sem dúvida. Não obstante é necessário nos ajudarem a nos aproximarmos delas, quando pudermos, mesmo um pouquinho, em vez de nos vedarem de antemão esse gosto, mesmo que amargo, ou essa possibilidade, mesmo que dolorosa. A veracidade, mesmo que no leito de morte, continua a valer contudo nunca sozinha, repitamos: a compaixão também vale, o amor também vale, e mais, brandir a verdade a quem não a pediu, a quem não a pode suportar, a quem será dilacerado ou esmagado por ela, não é boa-fé: é brutalidade, é insensibilidade, é violência. Portanto, deve-se dizer a verdade, ou o mais de verdade possível, pois a verdade é um valor, pois a sinceridade é uma virtude; mas não sempre, mas não a qualquer um, mas não a qualquer preço, mas não de qualquer maneira!

 

É preciso dizer a verdade tanto quanto possível, ou tanto quanto devido, digamos que tanto quanto possível fazer sem faltar com isso a alguma virtude mais elevada ou mais urgente. É aí que voltamos a encontrar Jankélévitch: “Ai dos que põem acima do amor a verdade criminosa da delação! Ai dos brutos que dizem sempre a verdade! Ai dos que nunca mentiram!” No entanto, isso só vale em relação a outrem: porque é legítimo preferir o outro, principalmente quando ele sofre, principalmente quando ele é fraco, à sua própria veracidade. É aí que a boa-fé vai mais longe que a sinceridade, e se impõe, ou é válida, universalmente.

 

Às vezes, é legítimo, inclusive moralmente, mentir a outrem em vez de lhe dizer a verdade. Mas a má-fé não poderia, em relação a si mesmo, valer mais que a boa, pois seria colocar-se acima da verdade, e seu conforto ou sua consciência tranqüila acima de seu espírito. Seria pecar contra o verdadeiro e contra si. A todo pecado misericórdia, sem dúvida: cada um faz o que pode, e a vida é difícil demais, cruel demais, para que se possa, nesses domínios, condenar quem quer que seja. Quem sabe, diante do pior, o que irá fazer, e a quantidade de verdade, então, que será capaz de suportar? Isso não significa, porém, que tudo se equivale, nem que a má-fé em relação a si mesmo pode ser considerada moralmente neutra ou indiferente. Se é legítimo mentir ao mau, por exemplo quando nossa vida está em jogo, não é que nos coloquemos então acima da verdade, pois isso não nos impede em nada de amá-la, de respeitá-la, de nos submetermos a ela, pelo menos interiormente. É no próprio nome do que acreditamos verdadeiro que mentimos ao assassino ou ao bárbaro, e são mentiras, nesse sentido, de boa-fé.

 

É aí que cumpre distinguir a sinceridade, que se dirige a outrem e autoriza  exceções (é boa-fé transitiva e condicional), da boa-fé reflexiva, que só se dirige a si e que, por conseguinte, é universalmente válida e não admite exceções.

 

Que é necessário mentir às vezes a outrem, por prudência ou compaixão, já vimos e não vou voltar a isso. Mas o que poderia justificar mentirmos a nós mesmos? A prudência? Seria colocar nosso bem-estar acima da lucidez, nosso ego acima de nosso espírito. A compaixão? Seria carecer de coragem. O amor? Mas, sem a boa-fé, não passaria de amor-próprio e narcisismo.

 

Jean-Paul Sartre  mostrou que a má-fé, como “mentira a si”, trai uma dimensão essencial de qualquer consciência humana, que lhe impede de coincidir absolutamente consigo, como uma coisa ou um fato.

 

Acreditar-se no que não é equivale a desacreditar-se de si, negar a si mesmo. Por isso a má-fé é, para toda consciência, um risco permanente. Mas é um risco que precisamos enfrentar, e que não poderíamos sem  má-fé transformar em fatalidade ou em desculpa. A má-fé não é um ser, nem uma coisa, nem um destino, mas a coisificação do que somos, do que cremos ser, do que queremos ser, sob a forma, necessariamente artificial, do em-si-por-si.

 

O contrário da má-fé também não é um ser, nem uma coisa, nem mesmo uma qualidade: é um esforço, é uma exigência, é uma virtude. Assim é a autenticidade, assim é a boa-fé, em qualquer um, quando não é coincidência em si de uma consciência satisfeita ou petrificada, mas subtração perpétua à mentira, ao espírito de seriedade, a todos os papéis que representamos ou que somos, em suma, à má-fé, e a si.

 

A pensá-la em sua especificidade,  a boa-fé é o amor absoluto à verdade consigo e de modo relativo em relação a outros. Por isso que a verdade sem a caridade não é Deus e a caridade sem a verdade não passa de uma mentira entre outras, e não é caridade.

 

É o espírito eterno e fugaz, que escarnece de tudo  e de si mesmo. Da verdade? Isso lhe acontece, mas também é uma maneira de amar.  Venerá-la, fazer dela um ídolo, fazer dela até um deus, seria mentir.

 

Todas as verdades se equivalem, e de modo absoluto não valem nada. Não é porque a verdade é boa que devemos amá-la, mas  é porque a amamos que ela nos parece boa, e o é de fato para os que a amam. A verdade não é Deus ela só vale para os verídicos, que a amam sem adorá-la, que se submetem a ela sem por ela se deixarem enganar.

 

O amor é, pois, primeiro? Sim, mas apenas se verdadeiro: primeiro no valor, pois, e segundo no ser. É o espírito do espírito, que prefere a sinceridade à mentira, o conhecimento à ilusão, e o riso à seriedade. Por isso a boa-fé leva ao humor, assim como a má-fé, à ironia.

 

EM RESUMO

 


Esta palavra ( boa-fé )rege nossas relações com a verdade. Confunde-se com sinceridade. É a conformidade dos atos e palavras com nossa vida interior. Não é dizer sempre a verdade, pois podemos nos enganar, mas dizer a verdade em que cremos. Também podemos nos encontrar em situação em que a prudência impede que a pronunciemos. Mas ainda que se cale sobre ela, os atos devem confirmar a verdade em que se crê, como, por exemplo, mentir para salvar a vida de um inocente.

 

 

Texto adaptado do livro

“Pequeno Tratado das Grandes Virtudes”

do autor André Comte-Sponville