O  LEÃO, A CAMURÇA E A RAPOSA

 

Um leão perseguia uma camurça num vale. Estava prestes a agarrá-la, e com olhos cúpidos previa um garantido e satisfatório repasto. Parecia impossível à vitima escapar, uma ravina profunda barrava o caminho tanto do caçador quanto da caça. Mas a ágil camurça, reunindo todas as suas forças, lançou-se como uma flecha sobre o abismo e parou do outro lado sobre uma pedra.

 

O leão deteve-se abruptamente. Mas naquele momento um grande amigo dele passava por ali. Esse grande amigo era a raposa. “O que!”, ela disse, “com a sua força e agilidade, você vai perder para uma fraca camurça? Basta  querer, e será capaz de fazer maravilhas. Embora o abismo seja profundo, se você quiser mesmo, tenho certeza de que o vencerá. Sem dúvida você pode confiar na minha amizade desinteressada. Eu não exporia a sua vida a tanto risco se não conhecesse tão bem a sua força e destreza.

 

O sangue do leão ferveu nas veias. Ele se atirou com toda a força ao espaço. Mas não conseguiu vencer o abismo e caiu de cabeça, morrendo na queda. Então, o que fez o seu grande e querido amigo?  Desceu cautelosamente até o  fundo da ravina, e lá, ao ar livre e no espaço aberto, vendo que o leão não precisava mais de elogios nem de obediência, se dispôs a prestar os últimos exéquias ao amigo morto e, de uma só vez, devorou-o até os ossos.

 

IVAN KRILOFF, 1768 – 1844

 

INTERPRETAÇÃO

 

Todo mundo tem um ponto fraco, uma brecha no muro do castelo. essa fraqueza em geral é uma insegurança, uma emoção ou uma necessidade incontrolável ou um pequeno prazer secreto. Seja como for, uma vez encontrado esse ponto fraco, é ali que seus inimigos vão apertar.

 

A raposa ardilosa alimentou a emoção incontrolável do Leão. A emoção incontrolável pode ser um temor desproporcional à situação - ou qualquer motivo básico como paixão, ganância, vaidade ou ódio. Gente presa a essas emoções não consegue se controlar, e sempre haverá quem queira  utilizar-se do descontrole alheio em proveito próprio.

 

A inveja é um dos resíduos dos costumes bárbaros. Por isso, a inveja é um índice seguro do atraso dos homens que a ela se entregam. É um sentimento tão funesto quanto à falsidade, a vingança e a vileza que são suas companheiras assíduas.

 

Com efeito, aquele que se entrega a essa paixão cega e fatal quase nunca se vinga às claras. No mais das vezes, assume uma atitude hipócrita, dissimulando os maus sentimentos que o animam. Toma então caminhos escusos, seguindo o inimigo na sombra, sem que este desconfie, e aguarda o momento propício para feri-lo sem perigo. Ocultando-se na dissimulação, vigia-o sem cessar, prepara-lhe ciladas odiosas, e quando surge a ocasião, derrama-lhe o veneno na taça.

 

FORMAS  DE SUA MANIFESTAÇÃO

 

Enquanto não consegue chegar ao torpe objetivo, ataca-o na sua honra e nas suas afeições. Não recua diante da calúnia e suas pérfidas insinuações, habilmente espalhadas dissimuladamente em todas as direções que vai cultivando pelo caminho alheio. Dessa maneira, quando o invejado perseguido aparece atingido pelo seu sopro envenenado, deleita-se de encontrar o alvo em contato com semblantes frios onde outrora havia rostos amigos e bondosos..[..], quando as mãos amigas que outrora o procuravam agora se recusam a apertar a do seu alvo invejado.[..].Essa é a forma de torpeza cem vezes mais criminosa  e cada vez mais frequente nos dias atuais  !

 

Outra forma de manifestação da inveja é a da criação de estereótipo negativos do invejado. A prática se dá na tentativa de identificar seu nome com uma certa qualidade ou ato mau. Há uma tendência humana a zombar ou condenar as pessoas mais do que louvá-las. Assim, o invejoso tenta associar o invejado a um estereótipo negativo, tal como fizeram com "Judas" ou "Messalina", ou como no conhecido fenômeno de preconceito nacional ou racial que deu um cunho negativo aos nomes "Judeu" ou "Negro" ou de forma regional como ao termo "carioca" no Estado de São Paulo.

 

Moral 

 

Cautela com os amigos !!!  Eles o trairão mais facilmente, pois são com mais facilidade levados à inveja. Eles também se tornam mimados e tirânicos.  De fato, a quem diga que se tem mais o que temer por parte dos amigos do que dos inimigos.

 

 

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Aqueles que se aplicam ao prazer da parte que em nós está sujeita à morte, desprezando o uso da razão, tomam hábitos de feras; pois assim devem ser considerados, como exprimiu Epíteto  ao dizer:

 

"Sou de fato um pobre homem e minha miserável carne, seja realmente miserável. Tens, não obstante, algo que é superior à carne. Por que, então, o abandonaste e estás atado à carne? Por este laço com a carne, alguns, vergando-se a ela, fazem-se semelhantes aos lobos, infiéis, pérfidos e insidiosos; outros semelhantes aos leões, brutais, ferozes e truculentos e, enfim, a maior parte de nós torna-se semelhante às raposas".

 

Resguardar-se de lobos e leões é algo mais pronto pela notícia que se tem da violência deles porque poucas vezes são encontrados; mas as raposas entre nós são muitas e nem sempre conhecidas, e, quando são reconhecidas, é difícil usar a arte contra a arte, e nesse caso será mais astuto quem mais souber manter a aparência de tolo, pois, mostrando acreditar em quem quer nos enganar, pode-se fazer com que ele creia em nosso modo; e é de grande inteligência que se dê a ver não ver quando mais se vê, pois assim é o jogo com olhos que parecem fechados e estão em si mesmos abertos.

 

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Para um bom inimigo, escolha um bom amigo para ele. Ele sabe onde atacar.

 

Diane de Poitiers. 1499-1566

 

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Sempre que ofereço um posto vago, faço centenas de descontentes e um ingrato.

 

Luiz XIV, 1638-1715

 

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Assim, eu mesmo já fui mais de uma vez iludido pela pessoa a quem mais amava e em cujo amor, acima de qualquer outra pessoa, eu mais confiava. Acredito, portanto, que seja certo amar e servir a uma pessoa mais do que a todas as outras, porém  jamais confiar tanto nesta tentadora armadilha da amizade a ponto de ter de se arrepender mais tarde.

 

Baldassare Castiglione - 1478-1529

 

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O indivíduo educado é aquele que aprendeu a conseguir o que lhe é necessário sem violar os direitos alheios. A educação vem de dentro. Consegue-se com empenho, esforço e propósito.

 

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Texto compilado extraído de livro dos autores Robert Greene e Joost Elffers