A Nobreza  e  a  Vileza

 A Fortuna e a Pobreza

A Sorte e o Azar

 

Os textos foram extraídos do livro "O Cortesão"  publicado pela primeira vez em 1528, de autoria de Baldassare Castiglione, escrito de forma  relatando as conversas mantidas na Corte de Urbino sobre tudo aquilo que  convém à formação do perfeito cortesão. e também de livro dos autores Robert Greene e Joost Elffers.

 

 

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quero, portanto, que esse nosso cortesão tenha nascido nobre e de rica família porque muito menos se critica um plebeu por deixar de fazer operações virtuosas do que um nobre, o qual, ao se desviar do caminho de seus antecessores, macula o nome da família e não somente deixa de adquirir, mas perde o já adquirido porque a nobreza é como uma clara lâmpada que manifesta e permite ver as obras ruins, acende e estimula a virtude, tanto com o temor do opróbrio ( vergonha ) como com a esperança de louvores e, como esse esplendor de nobreza não é revelado pela obra dos plebeus, a estes falta o estímulo e o temor daquela infâmia e não se sentem obrigados a ir além de onde foram seus antecessores; e aos nobres parece censurável não chegar pelo menos ao ponto que lhes foi assinalado por seus ancestrais.  Porém, sucede quase sempre que, nas armas e nas outras ações virtuosas, os homens mais assinalados são nobres porque a natureza em tudo inseriu aquela semente oculta que dá uma certa força e propriedade de seu princípio a tudo aquilo que dela deriva e o faz semelhante a si mesma, como vemos não só nas raças de cavalos e outros animais, mas também nas árvores, cujos galhos quase sempre se assemelham ao tronco; e, se às vezes degeneram, o responsável é o mau agricultor.

 

 

E assim sucede com os homens que, se criados com bons costumes, quase sempre são similares àqueles de quem procedem e muitas vezes melhoram; mas, se falta quem cuide bem deles, tornam-se como selvagens e não amadurecem nunca. É verdade que, favorecidos pelas estrelas ou pela natureza, alguns nascem acompanhados de tantas graças que parecem nem ter nascidos, mas que algum deus, com suas próprias mãos, os tenha criado e dotado de todos os bens da alma e do corpo; do mesmo modo que muitos se mostram tão ineptos e grosseiros que só se pode pensar que a natureza os pôs no mundo por despeito ou por engano. Como estes, com cuidados assíduos e boa criação, na maioria das vezes poucos frutos dão, e aqueles, com pouco esforço, chegam ao auge da suma excelência. Para dar-vos um exemplo: observai o senhor dom Ippolito d”Este, cardeal de Ferrara, o qual tanta felicidade recebeu desde a nascença que a pessoa, o aspecto, as palavras e todos os movimentos seus são de tal modo dotados de graça que dentre os mais antigos prelados, embora jovem, representa uma tão forte autoridade que logo parece mais apto a ensinar que necessitando aprender; igualmente, ao conversar com homens e mulheres de todas as condições, ao jogar, ao rir e motejar, exibe uma certa doçura e tão gráceis costumes que cada um que a ele se dirige ou o vê lhe fica por força perpetuamente afeiçoado. Entre esta graça excelsa e aquela insensata tolice ainda se encontra um meio-termo; e podem aqueles, que não são tão perfeitamente dotados pela natureza, com estudo e esforço, limar e corrigir em boa parte os defeitos naturais.

 

 

Texto   extraído  do Livro “ O Cortesão”,  publicado pela primeira vez em 1528, de autoria de Baldassare Castiglione.

 

 

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A LEI  TRANSGREDIDA

 

 

Quando Luis XIV morreu, em 1715, depois de cinquenta e cinco anos de glorioso reinado, todos os olhares se concentraram no seu bisneto e sucessor escolhido, o futuro Luis XV, na época com apenas cinco anos de idade. Luis XIV tinha transformado um país à beira de uma guerra civil na principal potência da Europa. Os últimos anos do seu reinado foram difíceis – ele estava velho e cansado – e esperava-se que a criança se transformasse no tipo de governante enérgico que daria novo vigor ao pais e solidificasse ainda mais as firmes bases construídas por Luis XIV.

 

 

Com este objetivo, o menino teve como tutores as melhores mentes da França. Nada foi negligenciado na sua educação.Mas quando Luis XV subiu ao trono, em 1726, ocorreu nele uma súbita mudança: ele não precisava mais estudar ou agradar aos outros para provar quem era. Estava sozinho no topo de um grande país, com riqueza e poder às suas ordens. Podia fazer o que quisesse.

 

 

Nos primeiros anos do seu reinado, Luis se dedicou ao prazer, deixando o governo nas mãos de um ministro de confiança, André-Hercule de Fleury. Isto não causou muita preocupação, pois ele era jovem e precisava da vazão à sua juventude, e Fleury era um bom ministro. Mas aos poucos foi ficando evidente que aquela era mais do que uma fase passageira. Luis não tinha interesse em governar. Sua principal preocupação não eram as finanças da França, ou uma possível guerra com a Espanha, mas o tédio.  Ele não suportava se sentir entediado. E quando não estava caçando veados, ou mocinhas, passava o tempo nas mesas de jogo, perdendo enormes quantias numa só noite.

 

 

A corte, como sempre, refletia os gostos do governante. Jogos e festas sofisticadas se tornaram uma obsessão. Os cortesãos não se preocupavam com o futuro da França – todas as suas energias estavam voltadas para encantar o rei, tentando obter ardilosamente títulos que lhes dessem pensões vitalícias e cargos no ministério que exigissem pouco trabalho e pagassem muito bem. Os parasitas afluíam à corte, e as dívidas do Estado inchavam.

 

 

Em 1745, Luis se apaixonou por Madame de Pompadour que se tornou a amante oficial do Rei. Mas, Madame tinha também ambições políticas e acabou emergindo como o primeiro-ministro não oficial do país e era ela, não Luis, que exercia o poder de contratar e despedir os ministros mais importantes da França.

 

 

Com o tempo, Luis só queria saber de mais diversões. Nos terrenos de Versalhes ele construiu um bordel, o Parc aux Cerfs, que abrigava algumas das moças mais bonitas da França. Passagens subterrâneas e escadarias ocultas davam acesso a Luis a qualquer hora. Quando Madame de Pompadour morreu, em 1764, foi substituída na função de amante real por Madame Du Barry, que logo passou a dominar a corte e, como Pompadour antes dela, a se meter nos negócios de Estado. Toda a Europa ficou horrorizada quando Du Barry demitiu Étienne de Choiseul, ministro das Relações Exteriores e o diplomata mais hábil da França, que não demonstrava muito respeito por ela.

 

 

Com o passar do tempo, vigaristas e charlatões se aninharam em Versalhes, despertando o interesse de Luis pela astrologia, pelo ocultismo e negociatas fraudulentas. O jovem e mimado adolescente que tinha assumido o governo da França anos antes só fez piorar com a idade.

 

 

O lema associado ao reinado de Luis XV foi “Que se dane a França, quando eu não estiver mais aqui.” E, na verdade, quando Luis se foi, em 1774, exaurido por uma vida de deboche, as suas próprias finanças e a do seu país estavam uma horrível confusão. Seu neto, Luis XVI, herdou um reino que precisava  desesperadamente de reformas e de um líder enérgico. Mas Luis XVI era ainda mais fraco do que o avô, e ficou assistindo à decadência do país até a revolução. Em 1792, a república criada pela revolução francesa declarou o fim da monarquia, e deu ao rei um novo nome: “Luis, o Último.”  Meses depois, ele se ajoelhava diante da guilhotina e a cabeça prestes a ser cortada perdera o brilho e o poder de que o Rei Sol ( Luis XIV, seu avô ) investira a coroa.

 

 

INTERPRETAÇÃO

 

 

Diante de um país que tinha chegado a uma guerra civil no fim da década de 1640, Luis XIV criou o reino mais poderoso da Europa. Grandes generais tremiam diante dele. Certa vez um cozinheiro errou na preparação de um prato e preferiu se suicidar do que enfrentar a ira do rei. Luis XIV teve muitas amantes mas o poder delas terminava no quarto de dormir. Ele encheu a sua corte com as mentes mais brilhantes da época. O símbolo do seu poder foi Versalhes: recusando-se aceitar o palácio que foi de seus antecessores, o Louvre, ele construiu seu próprio palácio numa região que na época era longe de tudo e de todos, simbolizando que estava fundando uma nova ordem, uma ordem sem precedentes. Ele fez de Versalhes a peça central de seu reino, um lugar que todos os poderosos da Europa invejavam e visitavam com admiração e respeito. Em essência, Luis XIV pegou um grande vazio – a monarquia decadente da França – e o encheu com seus próprios símbolos e poder radiante.

 

 

Por outro lado, Luis XV, simboliza o destino dos muitos que herdam alguma coisa grande ou norteiam a vida seguindo as pegadas de um grande homem. ( quantos cantores sertanejos dedicam-se a imitar a voz de xitãozinho e xororó e passam a vida apagados na sombra daqueles! ).

 

 

Parece fácil para um filho ou sucessor continuar construindo sobre as bases deixadas para ele, mas o que comumente ocorre é o inverso. O filho mimado, cheio de vontades, quase sempre dilapida a herança, porque não parte da necessidade de preencher um vazio como aconteceu com o pai. Como diz Maquiavel: “A necessidade é que leva o homem a agir, e quando ela deixa de existir sobra apenas podridão e decadência.”

 

 

Não havendo mais necessidade de aumentar a sua reserva de poder, Luis XV inevitavelmente sucumbiu à inércia. No seu governo, Versalhes, símbolo da autoridade do seu pai Luis XIV – o Rei Sol – tornou-se um local de prazer extraordinariamente banal, uma espécie de Las Vegas da monarquia Bourbon. Passou a representar tudo o que a oprimida classe camponesa da França detestava no seu rei, e durante a Revolução eles a saquearam com satisfação.

 

 

A sorte e a circunstância têm sempre o seu papel na vitória. Isto é inevitável. Mas, a despeito do que se pensa, a sorte é mais perigosa do que o azar. O azar dá lições preciosas sobre a paciência, tempo oportuno e a necessidade de estar preparado para o pior; a sorte ilude ensinando o contrário, fazendo você pensar que o seu brilhantismo vai sustentá-lo até o fim. A sorte vira, isso é inevitável, nada trai mais do que a sorte, e aí você estará totalmente despreparado.

 

 

Segundo Maquiavel, essa foi a ruína de César Bórgia. Ele teve muitos triunfos, foi na verdade um hábil estrategista, mas teve o azar de ter tido sorte: teve um papa como pai. Então, quando teve azar de verdade – o pai morreu – não estava preparado para isso e foi devorado pelos muitos inimigos que tinha feito.  A mesma sorte que o põe lá em cima ou sela o seu sucesso mostra que é hora de abrir os olhos: a roda da fortuna o lançara para baixo com a mesma facilidade com que o coloca lá no alto. Preparando-se para a queda, é menos provável que ela o arruíne quando acontecer.

 

 

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O passado é um defunto para ser usado como você  achar melhor. Se o que aconteceu no passado recente foi doloroso e sombrio, é autodestrutivo associar-se a ele.

 

 

Quando Napoleão assumiu o poder, todos ainda tinham fresca na memória a lembrança da Revolução Francesa. Se a corte que ele estabeleceu tivesse alguma semelhança com o luxo da corte de Luis XVI e Maria Antonieta, seus cortesãos passariam o tempo preocupando-se com os próprios pescoços. Em vez disso, a corte de Napoleão foi notável por sua sobriedade e falta de ostentação. Era a corte de um homem que valorizava o trabalho e as virtudes militares. Esta nova forma parecia apropriada e tranquila.

 

 

Em outras palavras, preste atenção à época e aos fatos.  Afinal, aproveitar o passado no que ele pode servir aos seus interesses pessoais vai lhe dar mais vantagem do que tentar eliminá-lo totalmente – que seria um empreendimento fútil e autodestrutivo, mas, em caso contrário, deve eliminá-lo.

 

 

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“Mas quando tornaram a soberania hereditária, os filhos rapidamente degeneraram; e, longe de tentar igualar as virtudes de seus pais, eles consideraram que um príncipe só tinha de ser maior do que os outros na ociosidade, na indulgência e nas várias formas de prazer.”

 

Nicolau Maquiavel, 1469 – 1527

 

 

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O Pai

 

 

Ele lança uma sombra gigantesca sobre seus filhos, que, mesmo depois de morto, os mantém escravizados ao passado, arruinando a sua juventude e forçando-os a seguir o seu mesmo caminho desgastado. São muitos os truques que ele usa. A cada encruzilhada você deve matar o pai da sua sombra.

 

 

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Cuidado para não pisar nas pegadas de um grande homem – você terá de fazer o dobro do que ele fez para superá-lo. Quem segue os outros é considerado um imitador. Por mais que se esforce, nunca se livrará dessa carga. É raro encontrar um novo caminho para a excelência, uma rota moderna para a fama. São muitos os caminhos da singularidade, nem todos bem percorridos. Os mais recentes podem ser árduos, mas são quase sempre atalhos para a grandeza.

 

Baltasar Gracián, 1601 – 1658

 

 

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A LEI RESPEITADA

 

 

Alexandre, o Grande, foi dominado por uma paixão quando jovem – uma intensa aversão por seu pai, o rei Filipe da Macedônia. Ele odiava o seu estilo dissimulado e cauteloso de governar, seus discursos bombásticos, suas bebedeiras e libertinagens, e seu gosto por lutas corporais e outros desperdícios de tempo. Alexandre sabia que tinha de ser o oposto do seu pai dominador: ele se forçaria a ser corajoso e imprudente, controlaria a sua língua e seria um homem de poucas palavras, e não perderia o seu precioso tempo em busca de prazeres que não comprariam a glória.

 

Alexandre também se ressentia do fato de seu pai já ter conquistado a maior parte da Grécia e se queixou certa vez: 

 
 

“Meu pai vai continuar conquistando até não sobrar nada de extraordinário para eu fazer.”.

 

Enquanto os filhos de homens poderosos se contentavam em herdar uma fortuna e viver uma vida de prazeres, Alexandre só queria superar o pai, apagar o nome de Filipe da história suplantando suas realizações, queria a todo custo mostrar que era superior ao pai.

 

 

INTERPRETAÇÃO

 

 

Alexandre representa um tipo extremamente raro na história: o filho de um homem famoso e bem-sucedido que consegue superar o pai na glória e no poder. A razão deste tipo ser raro é simples: o pai quase sempre consegue acumular a sua fortuna, o seu reino, porque inicia com pouco ou nada. Uma necessidade desesperada o impele para o sucesso – ele não tem nada a perder com a astúcia e a impetuosidade, e não tem um pai famoso para competir.

 

 

Este tipo de homem ( pai de sucesso ) tem motivos para acreditar em si próprio – acreditar que a sua maneira de fazer as coisas é a melhor, porque, afinal de contas, funcionou com ele. Frequentemente um homem  assim torna-se dominador e opressivo, impondo o que aprendeu ao filho, que frequentemente está começando a vida em circunstâncias totalmente diferentes daquelas em que o pai começou. Em vez de permitir que o filho tome um novo caminho, tenta fazer com que ele siga as suas pegadas e, ao contrário, fazem com que os filhos se tornem acovardados, cautelosos e aterrorizados com a ideia de perder o que seus pais conquistaram.

 

 

O filho jamais sairá da sombra do pai se não adotar a estratégia implacável de Alexandre: destrua o passado, crie o seu próprio reino, coloque o pai na sombra em vez de deixar que ele faça isso com você. Se não puder materialmente começar do zero – seria tolice renunciar a uma herança – você pode pelo menos começar do zero psicologicamente.

 

 

Alexandre reconheceu instintivamente que os privilégios do berço também podem ser fortes empecilhos ao próprio sucesso. Às vezes, é necessário ser impiedoso com a tradição do passado – não só com as de seu pai e do pai dele, mas com suas próprias conquistas anteriores. Só os fracos descansam sobre seus louros e idolatram triunfos passados; no jogo da vida não sobra tempo para descansar.

 

 

A atitude ambivalente, hostil, com relação à figura do rei ou pai também encontra expressão nas lendas dos heróis que não conhecem seus pais. Moisés, arquétipo do homem poderoso, foi encontrado abandonado entre os juncos e jamais soube quem eram seus pais; sem um pai para limitar seus passos, ele chegou ao auge do poder. Hércules e Jesus Cristo não tinham um pai terreno,  esse era filho do Espírito Santo, aquele do deus Zeus. No final da sua vida, Alexandre, o Grande, espalhou a história de que o deus Júpiter Amon é que o havia gerado, não Filipe da Macedônia. Lendas e rituais como esses foram criados a fim de desvincular as mudanças necessárias  da tradição do passado.

 

 

O passado pode impedir que um jovem herói crie o seu próprio mundo se ele equivocadamente fizer o que o pai fez quando o que era motivo de  sucesso no passado não continuar acontecendo no presente. O passado também sobrecarrega o herói com  uma herança que ele tem pavor de perder, tornando-o excessivamente tímido e cauteloso. Por isso, também os jovens que anseiam definir o seu próprio espaço no mundo são facilmente colocados contra os mais velhos e se ressentem com a sombra dos pais.

 

 

O distanciamento entre alguém e o seu predecessor quase sempre é acompanhado de um certo simbolismo, uma forma de anunciar publicamente. Luis XIV criou esse simbolismo ao rejeitar o palácio tradicional dos reis franceses e construir o seu em Versalhes e foi além transformando os rituais dos seus ancestrais em relíquias ridículas do passado.  O rei Filipe II, da Espanha, fez o mesmo ao criar o seu centro de poder, o palácio de El Escorial, no meio do nada. Kennedy não jogava o paternal e monótono golfe – símbolo de aposentadoria e privilégios, e a paixão de seu antecessor Eisenhower. Mas jogava futebol americano no pátio da Casa Branca, a fim de passar a imagem de vigor e juventude para a sua administração.

 

 

Não obstante haver no passado coisas de que vale a pena se apropriar, qualidades que seria tolice rejeitar por uma necessidade de ser diferente. Até Alexandre, o Grande, reconheceu a capacidade do pai de organizar um exército e foi influenciado por ela, existe uma espécie de teimosia idiota recorrente ao longo da história, e um forte empecilho ao crescimento: a superstição de que se uma pessoa já teve sucesso fazendo A, B e C, outra pode recriar esse sucesso fazendo a mesma coisa ( vide cantores sertanejos ). Essa abordagem de produção em massa, sem individualidade, seduz os poucos criativos, pois é fácil e apela para a timidez e a preguiça dessas pessoas. Mas as circunstâncias muito raramente se repetem da mesma maneira.

 

 

Pode ser vantajoso usar a sombra de um grande predecessor se ela for escolhida como um truque, uma tática de que se possa descartar depois de conquistado o objetivo. Napoleão III usou o nome a a lenda do seu ilustre tio-avô, Napoleão Bonaparte, para ajudá-lo a ser presidente, primeiro, e depois imperador da França. Uma vez no trono, ele não ficou preso ao passado; mostrou logo que o seu reinado seria diferente e teve o cuidado de impedir que o público esperasse dele os mesmos sucessos de Bonaparte.

 

 

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A OUSADIA DE SER O PRIMEIRO

 

 

Muitos teriam brilhado como o fênix em seus ofícios se outros não tivessem chegado antes. Ser o primeiro tem uma grande vantagem; com fama, duas vezes melhor. Dê você as cartas primeiro, e ganhará no final... Quem chega antes ganha fama por direito de  primogenitura, e quem vem depois tem que se contentar com míseras porções...

 

 

Salomão optou sensatamente pelo pacifismo, deixando a guerra para o pai. Ao mudar de curso, foi mais fácil para ele se tornar um herói... E nosso grande Filipe II governou o mundo inteiro com prudência, surpreendendo as gerações. Se o seu pai invicto foi um modelo de prudência (...) Esta novidade tem ajudado os sensatos a conquistar o seu lugar no elenco dos grandes.

 

 

Sem abandonar a própria arte, o criativo abandona o lugar comum e dá, mesmo em ofícios velhos como o tempo, novos passos em direção à celebridade. Horácio cedeu a poesia épica a Virgílio, e Marcial, a lírica a Horácio. Terêncio optou pela comédia. Pérsio pela sátira, cada um esperando ser o primeiro no seu gênero. A ousadia na criatividade jamais sucumbiu à imitação fácil.

 

 

BALTAZAR GRACIÁN

 

 

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Como se viu na história de Luis XV, a plenitude e a prosperidade o tornou preguiçoso e inativo: quando nos sentimos garantidos, ficamos sem a necessidade de agir.

 

 

O dramaturgo Tennesse Williams saiu vertiginosamente da obscuridade para a fama com o sucesso de The Glass Menagerie. Escreveu ele mais tarde: “O tipo de vida que eu vivia antes deste sucesso popular exigia muita resistência, era uma vida de muita luta e muito esforço, mas era uma vida boa porque era aquela para a qual o organismo humano foi criado. Eu não percebia quanta energia vital estava desperdiçando nesta luta até a luta não existir mais. Era a segurança finalmente. Sentei-me e olhei ao redor, e de repente me senti muito deprimido.

 

 

Pablo Picasso sabia lidar com o sucesso. Ele mudava constantemente de estilo rompendo totalmente com aquilo que lhe dera o sucesso antes.

 

 

Quantas vezes os nossos primeiros triunfos nos transformam numa espécie de caricaturas de nós mesmos? Os poderosos reconhecem essas armadilhas, tal como Alexandre, o Grande, eles lutam constantemente para se recriar.

 
 
 

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(...) Sem esperar mais, disse o senhor Gaspar Pallavicino: não me parece tão necessário ao cortesão ter nascido nobre; e, se eu pensasse em dizer algo que parecesse novo para alguns de nós, acrescentaria que muitos filhos de mui nobre sangue foram cheios de vícios; e, ao contrário, muitos plebeus honraram com a virtude de sua posteridade. E, se for verdade o que dizíeis antes, isto é, que em cada coisa se acha oculta a força da primeira semente, todos nós teríamos uma mesma condição por termos tido um mesmo princípio, e assim ninguém seria mais nobre que o outro. Mas creio que existem muitas outras causas para nossas diversidades e graus de nobreza e baixeza, dentre as quais considero que a fortuna seja precípua; porque em todas as coisas mundanas vemos que ela domina, chegando quase a divertir-se em elevar até o céu quem lhe parecer, sem nenhum mérito, e sepultar no abismo os mais dignos de serem exaltados. Concordo com o que dizeis sobre a felicidade daqueles que nascem dotados de bens da alma e do corpo, mas isso se verifica tanto nos plebeus quanto nos nobres, pois a natureza não possui distinções tão sutis; ou melhor, como disse, muitas vezes se descobrem elevadíssimos dons da natureza em pessoas de baixa condição. Contudo, não se conquistando tal nobreza nem por inteligência, nem pela força, nem pela arte, e sendo mérito maior de nossos antepassados que nosso, parece-me muito estranho pretender que, se os pais de nosso cortesão não foram nobres, todas as suas boas qualidades sejam negadas e que não sejam suficientes as outras condições que haveis indicado para conduzi-lo ao máximo da perfeição: isto é, inteligência, beleza de rosto, elegância do corpo e aquela graça que à primeira vista sempre o torne muito apreciado por todos.

 

 

Então o conde Ludovico: não nego – respondeu – que também nos homens de baixa condição não possam reinar aquelas mesmas virtudes encontradas entre os nobres; mas, para não repetir o que já dissemos, com muitas outras razões que poderiam ser agregadas em louvor da nobreza, a qual sempre é honrada em cada um, porque é coisa sensata que dos bons nasçam outros bons, tendo nós de dar forma a um cortesão sem nenhum defeito e merecedor de todos os louvores, me parece necessário fazê-lo nobre, além de por muitas outras causas, também pela opinião universal que imediatamente acompanha a nobreza. Pois se houver dois cortesãos que não tenham anteriormente produzido impressões de si mesmos por meio de obras, boas ou ruins, assim que souber que um deles nasceu fidalgo e outro não, cada um há de considerar o plebeu menos estimável que o nobre, e aquele necessitará de muito trabalho e tempo para imprimir na mente dos homens uma boa opinião, ao passo que este, num momento, só por ser fidalgo, há de conquista-la. E a importância de tais impressões todos podem entender facilmente, pois, falando de nós, vimos entrar nesta casa homens que, embora sendo tolos e grosseirões, pela Itália afora granjearam fama de grandes cortesãos; e, apesar de terem por fim sido descobertos e identificados, enganaram-nos durante um bom tempo, mantendo em nossos espíritos aquela opinião de si que neles haviam encontrado impressa, se bem que tenham agido segundo seu pouco valor. Vimos outros que, a princípio pouco estimados, acabaram por ser muito bem-sucedidos. E esses erros têm várias causas, dentre outras, a obstinação dos senhores, os quais, por pretenderem milagres, às vezes acabam favorecendo aqueles que só merecem desfavores. E muitas vezes ainda se enganam, mas por sempre terem inúmeros imitadores, de seu favor deriva imensa fama, a qual a opinião dos homens vai acompanhando. E, se encontram alguma coisa que pareça contrária à opinião comum, supõem estarem se enganando e sempre esperam algo oculto, porque parece que tais opiniões universais devem ser fundadas na verdade e nascer de causas razoáveis; e porque nossos ânimos estão sempre disponíveis para o amor e o ódio, como se observa nos espetáculos de combates, de jogos e outros tipos de lutas, onde os espectadores frequentemente se afeiçoam, sem razão manifesta, a uma das partes, com desejo exacerbado de que esta vença e a outra perca.

 

 

Ainda sobre a opinião das qualidades dos homens, a boa ou má fama de início move nosso espírito para uma dessas duas paixões. Acontece porém que, em geral, julgamos com amor ou com ódio. Observai, portanto, quanta importância tem a primeira impressão, e como se deve esforçar por torna-la boa desde o começo quem pensa ter condição e nome de bom cortesão.

 

 

[...] .....não seria conveniente que um fidalgo fosse honrar com sua presença uma festa de aldeia onde os espectadores e os participantes fossem gente não nobre.  Disse então o senhor Gasparo Pallavicino: Na nossa Lombardia não existem tais restrições; ao contrário, encontram-se muitos jovens gentis-homens que dançam o dia inteiro ao sol com os camponeses e com eles arremessam o bastão, lutam, correm e saltam: e não creio que seja errado, pois ali não está em jogo a nobreza, mas sim a força e a destreza, em que muitas vezes os camponeses não valem menos que os nobres; e parece que essa intimidade contém uma certa liberalidade amável. Essa coisa de dançar na frente de todos – respondeu dom Federico – não me agrada de modo algum, nem vejo o que se pode ganhar com isso. Mas quem insiste em lutar, correr e saltar com os camponeses, deve, em minha opinião, fazê-lo como treinamento e, como se costuma dizer, por amabilidade, não para lutar com eles; e deve ter a quase certeza de vencer; caso contrário não o faça; porque está muito errado e é demasiado feio e indigno ver um fidalgo derrotado por um camponês, em especial na luta corpo a corpo; por isso creio que é melhor abster-se, pelo menos na presença de muita gente, pois o ganho ao vencer é pouquíssimo e a perda ao ser derrotado é muitíssima. Ainda se joga a péla quase sempre em público; e é um desses espetáculos para os quais a multidão muito contribui. Assim, quero que desse e de todos os outros, exceto terçar armas, o nosso cortesão participe como não sendo sua profissão, demonstrando não estar em busca ou à espera de louvores, nem que muito estudo ou tempo a isso dedique, mesmo que o faça muitíssimo bem;  também não se deve comportar como alguns que apreciam a música e, ao falarem com quem quer que seja, sempre que se faz uma pausa nas conversas, começam a cantar em voz baixa; outros, caminhando pelas ruas e pelas igrejas, vão sempre dançando; outros encontrando-se nas praças ou em outro lugar com algum amigo, logo se põe a esgrimir ou lutar, conforme sua preferência.

 

[...]

 

Digo, pois, que nesses espetáculos com armas o cortesão deve ter as mesmas precauções, concernentes à sua posição. Ao cavalgar, lutar, correr e saltar, gostaria que evitasse a multidão plebeia ou pelo menos que se deixasse ver bem raras vezes, pois não há no mundo coisa tão excelente que os ignorantes não acabem saciando-se dela e dando-lhe pouco valor, quando o vêem com frequência.  O mesmo penso sobre a música; por isso não quero que o nosso cortesão faça como muitos que, tão logo chegam onde quer que seja, inclusive na presença de senhores  de quem não têm o menor conhecimento, sem se deixarem rogar começam a fazer o que sabem e frequentemente até o que não sabem; de modo que oarece que somente com aquele objetivo tenham aparecido e que aquela seria a sua atividade principal.  Portanto, embora o cortesão saiba e entenda aquilo que faz, também nisso deve dissimular o estudo e o trabalho que são necessários em todas as coisas que têm de ser bem-feitas, e demonstre pouco estimar em si mesmo tal condição, porém, executando-as com maestria, faça que seja apreciada pelos outros. Como já dito, deve evitar multidões, em especial de plebeus. É necessário que o tempero de tudo seja a discrição.

 

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Texto   extraído  do Livro “ O Cortesão”,  publicado pela primeira vez em 1528, de autoria de Baldassare Castiglione.

 

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A VIDA DE PIETRO PERUGINO,

PINTOR, 1450-1523

 

Que às vezes a pobreza pode ser benéfica para os talentosos e que ela pode servir como um ótimo estímulo para que sejam perfeitos ou famosos na ocupação que escolherem, pode ser vista claramente nas atitudes de Pietro Perugino.

 

Desejando por meio da sua habilidade obter algum nível respeitável, depois de deixar para trás desastrosas calamidades em Perugia e vir para Florença, ele permaneceu ali muitos meses na pobreza, dormindo num baú, já que não tinha outra cama. Trocou o dia pela noite e, com o maior zelo, aplicava-se continuamente ao estudo da sua profissão. Depois que a pintura se enraizara dentro dele, o único prazer de Pietro era estar sempre trabalhando na sua arte e constantemente pintando. E, como ele tinha sempre diante dos olhos a ameaça da pobreza, fez coisas para ganhar dinheiro que provavelmente não teria se preocupado em fazer não tivesse sido forçado a se sustentar. Talvez a riqueza tivesse fechado o caminho da fama para ele e para o seu talento, assim como a pobreza o abriu, mas a necessidade era um estímulo, visto que ele desejava sair de uma situação tão inferior e miserável – se não talvez para o auge supremo da fama, pelo menos até um ponto em que teria o suficiente para viver. Por esta razão, ele não se importava com o frio. Fome, desconforto, inconveniências, labuta ou vergonha, se pudesse um dia chegar a viver em paz e tranquilidade; e ele sempre dizia – como se fosse um provérbio – que depois da tempestade, vem a bonança, e que durante a bonança é preciso construir abrigos para os tempos de privação.

 

LIVES OF THE ARTISTS,  GIORGIO VASARI, 1511 – 1574

 

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